A canção que ajudou a condenar homem por abuso sexual infantil na Argentina
22/12/2024
A compositora argentina Ruth Hillar queria incentivar as crianças a revelarem seus segredos, e composição chegou a ser incluída em processo judicial 'Era uma música urgente', diz a compositora Ruth Hillar. Imagem do vídeo da música, cortesia de Canticuénticos.
Cortesia de Canticuénticos via BBC
"Há segredos pequeninos que te convidam a brincar, e há segredos tão enormes que te vêm assustar."
Essas são as primeiras linhas da música infantil Hay Secretos (Há segredos, em espanhol). A canção chegou a ser usada como prova em um julgamento criminal.
A compositora da música é Ruth Hillar, que nasceu e vive em Santo Tomé, uma pequena cidade no centro da Argentina.
"Nasci em um lar muito musical. A música já estava lá antes de eu chegar: minha mãe e meu pai se conheceram cantando no coro polifônico de Santa Fé. Meu pai tinha um grupo de música humorística.
"Comecei com a flauta doce, depois a cantar, estudar os rudimentos da música, e sempre gostei muito disso."
Com o pai no violino, tocavam duetos, e, quando ganhou um gravador, brincar com a música se tornou uma das suas diversões favoritas.
Outra paixão que sempre a fascinou foi a leitura.
"Passava muitas, muitas horas lendo. Em casa havia uma biblioteca muito bonita. E, de fato, quando percebi que nas casas dos meus colegas de escola quase não havia livros, organizei uma biblioteca na calçada."
As duas paixões de Ruth – música e literatura – se mesclaram no grupo Canticuénticos.
BBC
Apesar do amor pela música e pela literatura, o que Ruth queria ser quando crescesse era veterinária ou pediatra. "Sempre algo ligado a cuidar de alguém, das crianças ou dos animais."
Essa ideia de cuidar dos outros, particularmente das crianças, mais tarde se tornaria o centro de seu trabalho como compositora.
'Nem simples nem fácil'
Ruth estudou literatura por um ano, mas decidiu que não gostava do curso e voltou para a música, agora como uma carreira universitária.
Inicialmente, pensou que seguiria o caminho tradicional de um músico acadêmico, integrando uma orquestra.
Com o tempo, porém, seus interesses se expandiram. Conheceu outra musicista e decidiram formar um grupo de música infantil: o Canticuénticos.
Após 17 anos, o grupo tem agora seis integrantes, seis discos e realizou centenas de shows.
No início, graças à estratégia de distribuição – que incluiu disponibilizar no YouTube as músicas do primeiro disco – e à natureza das canções, foram rapidamente descobertos por professores.
"Logo os docentes de Santa Fé adotaram o repertório para usar em sala de aula, e a província incluiu algumas músicas em um cancioneiro distribuído nas escolas.
"Isso nos incentivou muito a levar o projeto mais a sério, porque não é fácil."
"Existem segredos leves que fazem você voar", mas aqueles que não são assim não valem a pena guardar.
Cortesia de Canticuénticos via BBC
"Buscamos sempre criar músicas que acompanhem as infâncias, e não apenas o que se considera 'infantil', porque existe essa ideia de que o infantil é simples, fácil", diz a compositora. "Na verdade, a vida das crianças não é nem simples nem fácil. É muito complexa e, às vezes, muito difícil."
"Em um mundo tão caótico, muitas vezes as crianças são as que mais sofrem, porque são mais indefesas. Mesmo que tentemos protegê-las em uma espécie de redoma, a realidade se infiltra por todos os lados."
É por isso, afirma Ruth, que, às vezes, as músicas do Canticuénticos abordam temas incomuns para o gênero infantil. Ela admite que, em algumas ocasiões, seu desejo é promover alguma mudança.
"Parece pedir muito de uma canção, mas muitas vezes elas nascem assim, como respostas a algo. Então, nesse esforço de querer responder, preciso aprender a olhar mais profundamente para a resposta ser útil ou conectada com o que desejo dialogar."
Uma dessas canções é Hay Secretos, que fala diretamente às crianças sobre a importância de contar quando um segredo está machucando.
A música acabou desempenhando um papel importante para ajudar crianças e adultos a lidar com eventos dolorosos em suas vidas.
'Os segredos que fazem mal'
A canção diz que há "segredos leves que te fazem voar", mas também "segredos tão pesados que não te deixam respirar".
Em um trecho particularmente emocionante, a música diz: "Se as palavras não bastam para o que é preciso contar, inventemos outro idioma. Sempre vou te escutar."
E tem um refrão que busca ser um mantra: "Não se devem guardar os segredos que fazem mal".
"Um dos refrões tem apenas o som de uma caixa muito profunda, com vozes de meninas, meninos e adultos, homens e mulheres, representando uma comunidade inteira cantando unida pela proteção contra o abuso", diz a compositora.
Os professores têm papel fundamental no combate ao abuso infantil, aponta Ruth.
Cortesía de Canticuénticos via BBC
Os adultos precisam ser confrontados sobre este tema, diz Ruth, e é por isso que a canção não é dirigida apenas às crianças, mas também aos mais velhos.
"Na verdade, nós, adultos, somos os responsáveis pelo bem-estar das infâncias, não apenas de nossos filhos, mas de todas as crianças. Por isso, acho que esta canção quer dizer justamente: prestem atenção, estejam atentos, estejam onde precisam estar, olhem para essas crianças com um olhar sensível e compassivo.
"Muito disso recai sobre os professores, que, de fato, são os grandes heróis nessa luta, porque, nas escolas, eles têm mais acesso aos momentos em que as crianças conseguem se abrir. Muitas vezes, os abusos acontecem em casa, entre familiares ou no núcleo familiar."
Ruth compôs a canção em 2017 e conta que muitos caminhos a levaram a fazê-lo.
"O tema do abuso estava mais presente na esfera pública, e pensei: o que podemos fazer? Minha arma, minha forma de agir, é a música, não conheço outra. Ou, pelo menos, outras melhores não me ocorrem. Mas fiquei paralisada.
"Lembro que estávamos gravando o clipe da canção de ninar 'Noni Noni', buscando as imagens mais ternas e acolhedoras que conseguíamos imaginar. Ao observar de fora uma cena, pensei que muitas infâncias ficavam fora do alcance daquela música. Percebi que havia outra canção que era mais urgente."
Decidiu que precisava tentar, "mesmo que fosse tão difícil, mesmo que as palavras e os sons parecessem insuficientes. Como falar sobre isso sem ferir ainda mais quem já está machucado?".
"Tinha que ser sutil, para não machucar quem já havia sido machucado", diz a compositora.
Cortesia de Canticuénticos via BBC
Foi então que ela recebeu um e-mail de Sabrina Medina, uma assistente social de Paraná, uma cidade vizinha, dizendo que trabalhava em programas de prevenção ao abuso e que havia pouquíssimos recursos artísticos disponíveis.
"Ela me compartilhou as ideias principais: o tema do segredo, do medo, da confiança, de oferecer ajuda. Assim, soube que a canção já estava começada. Escrevi uma estrofe e a enviei para que ela me dissesse se havia algo que pudesse ferir", conta.
"Busquei sempre fazer referências sem nomear diretamente, para que quem estivesse vivendo uma situação de abuso pudesse se reconhecer, e quem não estivesse, pudesse interpretar de outra forma, algo sobre segredos mais leves ou mais pesados."
Hay secretos foi lançada no álbum ¿Por qué?, ¿por qué? em 2018, e logo o Canticuénticos começou a receber mensagens de mães, professores e assistentes sociais, evidenciando que a mensagem estava sendo recebida.
"Muitas crianças, e até mesmo muitos adultos, conseguiram falar sobre abusos que sofreram na infância. Para nós, foi difícil lidar com tudo isso porque, além de oferecer um abraço à distância, não podemos fazer muito, já que não somos profissionais da área."
A mensagem ressoou e continua a ressoar em cada vez mais línguas.
Cortesía de Canticuénticos via BBC
Silêncios em outros idiomas
A canção chegou até mesmo ao sistema judiciário argentino.
Em março de 2021, uma juíza da cidade de Zapala, na Patagônia, tocou Hay Secretos na sala de audiências.
Ela fez isso para destacar o papel da música na descoberta do caso de abuso que estava sendo julgado e pelo qual um homem foi condenado.
O que aconteceu foi que um professor de música apresentou a canção aos alunos do ensino fundamental. Uma dessas alunas compartilhou a música com sua família, e uma de suas irmãs, emocionada, revelou que havia sido abusada sexualmente por um vizinho.
Outras crianças da vizinhança se manifestaram e compartilharam suas próprias histórias de abuso pelo mesmo homem.
"Na verdade, o herói foi o professor que soube escolher essa música no contexto da Educação Sexual Integral (ESI). Ele foi o verdadeiro responsável por isso. Mas o que aconteceu com a canção me reafirma que a arte tem um poder enorme."
E esse poder reverbera além das fronteiras argentinas.
"Uma musicista e antropóloga brasileira me procurou e disse: 'Quero que essa música esteja em português, vou ajudar a traduzi-la', então fizemos isso", conta.
"Também temos uma versão em italiano que estamos prestes a gravar, e recebemos um pedido da Coreia para autorização de tradução do texto... Nos escreveram de muitos lugares diferentes."
Na Argentina e no Uruguai, a música foi incorporada como recurso da ESI.
Agora, Ruth e o grupo Canticuénticos estão trabalhando em uma versão em inglês da canção para alcançar ainda mais crianças.
"Estou aqui, quero te ajudar. Sei que você diz a verdade. Não será mais preciso ter medo, porque vou cuidar de você."